domingo, 3 de agosto de 2014

O sistémico que convém e a ética dos banqueiros

O capitalismo é um sistema que estabelece que o poder do dinheiro se sobrepõe ao poder que for, seja o do Estado autoritário puro e duro de que se serve ou que o expressa, seja a democracia em que grau estiver – o Estado puro e duro sempre se deu com a estrutura oligárquica e nunca tomou o seu fim e a implantação de outro sistema como objectivos. O modelo social deste sistema, cuja expressão política adequada é o ultraliberalismo, é o da destruição total de tudo o que seja aplicação de dinheiro em finalidades sociais, não rendíveis na lógica lucrativa privatizável maximizada. O dinheiro é negócio e existe para fazer dinheiro privado, mormente sob a forma de crédito, o que é hoje a sua forma mais rendível e rápida de lucrar – a velocidade cumpre um papel decisivo na vertigem da ganância (psicologia “espontânea” do credor na selva do real) associada aos fluxos de compra e venda de acções globalizados e do lucro associado às taxas usurárias (descem para voltar a subir) dos fundos creditícios. Não é por acaso que à volta desta forma de negócio se tenha erguido um sistema integral quase inexpugnável: teórico através de serventuários universitários que conferem uma aura de cientificidade aos seus mecanismos “positivos”, socialmente higienizadores deitando borda-fora os fracos, que os buracos e as bolhas especulativas sempre desmentem, mediático como propagador da ideologia única do lucro privado como princípio sagrado, servindo para isso um vasto coro de escribas e falantes nos palcos misturados da opinião e da propaganda, económico com o poder real dos bancos e das agências de rating, gangsterismo estatuído em lei internacional, governativo pelo lado de como os governos são os criados mais diligentes do financismo e seus propagadores relativizando o papel do Estado para mínimos interventivos reais – o Estado mínimo será um Estado apenas repressor, militarizado. 
Este sistema tem obviamente uma geografia e os seus exércitos e não abandona as outras formas de capitalismo que dependem dos recursos naturais planetários e da produção, nem aquele outro, chamado cultural e que criou um universo de entretenimento que converteu tudo em passatempo: as atrocidades constantes são info-entretenimento, preenchem tempo e consomem reservas de emoção cada vez mais mecanicamente reativa, desgastada na repetição insuportável, no domínio do que na tragédia antiga era profunda reflexão e terapia comunitária através do teatro – a “purga terapêutica”, limpeza espiritual, através da piedade e do terror, a educação para a compaixão pelo convívio à exposição do tabu rompido, através da palavra que nunca se faz – na tragédia - fuga desqualificada para o nada que é o que enche, na actualidade, os ecrãs de tudo e seja o que for.  
A mercantilização de todas as esferas do espírito, sangue que corre nas veias poluídas da sociedade e que ocupa os cérebros emergindo na actual escola – a que chamam educação e que querem adaptar ao que chamam economia - faz com que, pelo poder totémico que tem – que acrescenta ao seu poder real os outros, o poder dos fétiches e os que fazem sonhar com a vida dos ricos (seja o que isso for) – se subalternize o humano a uma sua própria criação, subjugando-o. Assim se complete um quadro a que se pode chamar sistema.
Mas a utilização desta palavra é extraordinária pois se aplica só nuns casos. O não reconhecimento do carácter sistémico deste capitalismo, o que seria reconhecer as suas “virtudes” destrutivas essenciais, genéticas, coincide com a defesa, pelos seus partidários, da capacidade da democracia lhe responder, essencialmente como actividade parlamentar para-governativa e também estruturante do que é a oposição. Ou melhor, de lhe resistir, que não pelo seu controlo já que o mercado deve ser absolutamente livre, isto é, desregulado – para o mercado a lei para à porta da rendibilidade do negócio e, seja como for, e no limite, compra-se. Evidentemente que entendem a democracia como um jogo, o jogo da palavra “liberdade”, aplicado a todos, mesmo a quem não tem meios de intervir realmente numa escala em que apenas os donos da média, os poderes do crédito e da publicidade, aliados do poder governativo, o podem fazer. O jogo da democracia dá para tudo e mesmo as divergências são formas de estruturação da aparência livre do sistema, sendo que verdadeiramente estéril, mudança bloqueada, é a prática grudada do antagonismo que se pratica como choque de supostos contrários e nada produz nesse confronto. Não será este mesmismo do que é antagonizado uma forma de bloqueio da própria possibilidade de se criarem espaços de compreensão real do que sucede, espaços fora de todo o tipo de controlo, cidadania? O que parece ser esclarecimento acaba, pelas vias do espectáculo de info-entretenimento, por ser ocultação. O que parece e se afirma transparência turva. 
Na realidade o carácter sistémico deste capitalismo tem como resultado a destruição da democracia – e do planeta, sabemo-lo - pois o sistema democrático, tal como é exercido pelos actuais poderes, não exerce sobre ele nenhum tipo de controlo nem regulação que justamente lhe controle a força sistémica, subalternizando-o e retirando-lhe um poder absolutizado, incapacitando-o de agir como uma totalidade de poder em todo o terreno. A sociedade do hipercontrolo massivo de consumo de massas e do financismo capitalista é isso, lucro livre nas transacções financeiras, desvalorização do trabalho e controlo das mentes através do controlo pela conversão de tudo em práticas de consumo ideologizadas, ritualizadas e miméticas – os consumidores são estrelas passivas do espectáculo do consumo, projectam de si a imagem que lhes vendem, os comportamentos são mimetizados em massa pelo efeito da sedução publicitária, ideologia específica do mercado – não há produto que na publicidade não tenha virtudes milagrosas e não liberte, não acrescente velocidade, não poupe tempo, não faça desaparecer arestas, dores, o que for. Nas paisagens do consumo o paraíso está na senha do cartão de crédito. Nunca a miséria mediana se sonhou tão idêntica, visibilizada, supostamente autodeterminada, com a arrogância dourada das elites – vejam-se as tais selfies. E não é história de self made man, é ilusão formatada como desejo. Quem não entende que uma autoestrada é uma via com portagens pagas, regras de uso e espaço absolutamente controlado, vídeo-vigiado, extensões de país privatizadas?
Engraçado é ver agora que o risco sistémico aparece associado à situação do BES, como se resultasse de uma patologia e o sistema fosse aquele que gera a tal confiança ou desconfiança nos bancos em função de comportamentos banqueiros – isto da confiança é para os bancos o que a fé é para a religião. O dinheiro está no lugar de Deus e vive de uma relação de culto (a publicidade do que é financeiro é omnipresente e multiplica-se a sofisticação das suas narrativas felicíssimas) e os banqueiros são os seus sacerdotes, magos dos meandros das finanças que sendo do todo acionista é deles. 
O problema é o capitalismo no seu todo e esta fase extremista a que chegou, com total desprezo pelo tipo de democracia que antes lhe convinha, no tempo em que admitia outras lógicas de distribuição por razões que a história explica associadas ao pós-guerra e ao inimigo soviético. Isto não vai parar, pois só um dado grau de controlo democrático deste capitalismo selvagem de novo tipo o poderá fazer, o que implica uma democracia também reinventada e um regresso da política ao plano das decisões globais. Ao estado democrático não basta tratar dos estragos do descontrolo selvagem deste sistema no planeta e em cada economia, com os seus conselhos de administração – “nomeados” eleitoralmente pelas formações de eleitores mais ou menos agidas por diversas formas de medo e mais que minoritárias face à totalidade dos votantes - a fingir de governos. Quem parece mandar no mundo são os tais “Fundos Abutre” como lhes chamam. O sistema das eleições não elege um poder que governe, elege um conselho de administração para reparação dos estragos sistémicos – um governo bombeiro – e um grupo de apaniguados do caos desregulado que é útil ao financismo para destruição do que é despesa social e serviço público. 
Pois estamos então em pleno risco sistémico e como alguns dizem isto é – seria, mas não é - o resultado de malfeitorias, tentando fulanizar o que é do esquema – como se este Espírito Santo fosse menos sério que outros, o Jardim Gonçalves, ou outro nome qualquer e o que acontece fosse coisa de “psicopatas vigaristas” que, curiosamente, são quem manda. Como se o sistema fosse alheio a isso e produzisse, a contrário, por efeito sistémico, doses de ética a montante a jusante da vida da dívida fluxionária e das bolsas, só que nada garantindo relativamente ao perfil dos seus administradores, principalmente dos Presidentes, apesar do BES ter internamente seis instâncias de controlo dos seus movimentos financeiros. 
Não vive o sistema de fraude, de esbulho, de saque e de saques iniciais – está teorizado e a cada início ou recomeço de fortuna é notório – de golpadas, de desvios, de produtos especulativos, de bolhas, como dizem, de um esquema transversal e mais ou menos oculto, de falta de ética e traficância em toda a sua orgânica altamente artificializada e compartimentada? Não é o financismo uma nova etapa da guerra sistémica do capitalismo contra toda e qualquer ordem mais justa que a que o seu caos alimentado poderosamente cria no mundo, porque para ele essa ordem é despesa, e pública, e a isso reage cegamente? 
Banqueiro sério? Só mesmo o do Pessoa que se revela, sem disfarce, inimigo das ficções sociais. Valha-nos a Dona Branca, coitadinha, ao menos não provocava risco sistémico, só mesmo lá no quarteirão.

fernando mora ramos

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